O último herói

Sou como um lemming. Pequenino, gordinho, bigodinho de roedor, dentinhos incisivos aguçados, correndo sofregamente para o precipício.

Há quem me diga que não sou assim tão pequenino, a não ser quando aplicado a um contexto pélvico. E que não sou propriamente gordinho, sou mais para o obscenamente obeso. E que chamar bigodinho de roedor ao tufo de cotão que se alojou sobre o meu lábio superior é uma ofensa aos bigodes másculos da mais fétida ratazana de esgoto. E quanto aos dentes, se são afiados, é porque eu insisto em limá-los com palha de aço, na crença inabalável de que sangrar da boca é sexy.

Mas ninguém contesta a minha sofreguidão pelo abismo. O profundo, negro, inexorável abismo.

Sempre imaginei a minha vida como uma imensa escadaria. Alta, íngreme e cheia de idiotas que não sabem encostar-se à direita.

E como todos os jovens, trepei o mais rapidamente possível essas escadas, na plena certeza de que o que está para vir seria melhor do que o que foi. Olhos ao alto, fiz questão de nunca olhar para trás. Nem, aliás, para os lados, exceptuando-se, é claro, quando passaram fêmeas jeitosas.

Pus os olhos naqueles que acima de mim eram verdadeiros exemplos. Modelos de vida a seguir. Tipos bem vestidos, bem falantes, cheios de princípios e admiráveis posturas corporais. Líderes de comunidade, perfeitos garanhões, paladinos cintilantes.

Eu queria ser como eles. Admirava a forma como eles subiam as escadas, perseverantes, de forma fácil, sem esforço, mesmo contra a maré dos tais idiotas que não sabem encostar-se à direita. Anotava a maneira como lideravam as massas, como sorriam durante um discurso, como sempre usavam cuecas lavadas, como nunca coçavam o escroto em público.

Sim, sempre tive heróis. Heróis que antes de mim subiam as escadas e mostravam-me o caminho. Heróis que sabiam para onde queriam ir e como chegar lá. E, como eles, eu queria chegar ao topo da escadaria e finalmente ver o que estava para além.

Sim, sempre tive heróis. Tive-os, de facto. Mas, para onde foram esses heróis? Estranhamente, deixei de os ver acima de mim na escada. E quando um deixava de estar visível, eu imediatamente focava os meus olhos noutro. E um por um, todos eles passaram do meu futuro para o meu passado.

Nunca questionei este facto. Sempre me pareceu natural. Talvez tenham chegado ao topo da escada e avançado com a sua vida, e por isso deixei de os ver.

Mas agora temo pior, muito pior. É que agora, sem heróis acima de mim, também eu cheguei ao topo da escada. E, subido o último degrau, diante de mim estende-se não uma planície verdejante, como sempre imaginei, mas um escarpado e sedutor abismo.

O cemitério dos meus heróis.

Não posso voltar para trás. Sei demais para isso. Um passo em frente e o abismo espera-me.

E porque não afinal? Quem sou eu para lutar com a ordem natural das coisas? Tantos, melhores do que eu, mais dignos do que eu, mais nobres do que eu, mergulharam na entorpecente escuridão. Porque não seguir o seu exemplo, como sempre o fiz? Porque não seguir os meus heróis, mesmo que até ao esquecimento?

Fechei os olhos. Abri os braços. Preparei o salto. Um som irritante perturbou-me.

Olhei para trás, uma criança, muito abaixo na escada, chamava-me e acenava para mim. E na sua parva e ingénua alegria eu reconheci os sintomas. Ela segue um herói. Um herói que está prestes a desaparecer.

Uma dor rasga-me de um lado ao outro.

Olho em frente, o abismo ainda chama por mim.

Cuspo-lhe. Enquanto conseguir, não me renderei ao vazio.

Esperarei por aqueles que sobem atrás de mim. Talvez juntos consigamos passar o abismo.

Olho para cima. Para o brilho que está para além de qualquer escada.

Talvez ainda haja um último Herói.

8 comentários:

João Valado disse...

Woohoo. Está de volta. Provocado, mas voltou.
Coerentemente insano, (...), poético e sumarento. Passando a fase dos sorrisos, fez-me pensar.
Mereces um pedacinho de queijo.
Um abraço.

Anónimo disse...

EV não cuspas k é feio! vale mais um bom traque sonorizado em stereo k alivia mais.
Fazes bem em esperar pelos k veem atrás.É muito bom não ser idiota,encostar à direita e deixar passar os sôfregos k querem subir a todo custo...
Levanta-te e brilha k já chegou a tua luz e o UNICO heroi está lá de verdade,à tua espera!
Um abração és um bacano!

Anónimo disse...

Realmente hj sonhei com um homem lá no alto...ou seria um robot com uma luz vermelha? ai não...afinal isso era o filme " I robot"...
Ev...mas não digas a ninguem..só o meu amigo joel é que sabe...mas eu sou o super-homem...talvez quando alcançar o cimo da escada consiga voar e ajudar-te...
Conheço um Sócio la em cima que arranja um lugar para nós...
não podes é levar a palha d´aço...acho que atrai a trovoada...
Abraço

Anónimo disse...

Sou um priveligiado. Poder ouvir esta história por ti, num bar tipicamente inglês com uma caneca e umas batatas à nossa frente. No meio de tanta confusão, disfunção e surrealismo, por vezes tenho medo da perfeição da nossa AMIZADE, Relacionamento. Obrigado por passares para a escrita aquilo que te vai no coração. Tu sabes que partilho muito daquilo que escreves e falas.

Abraço Amigo, Afilhado, Irmão.

ruben reis

Anónimo disse...

Isso só prova que eles afinal não eram heróis. Eram gente vulgar que numa determinada altura foram heróis. É impressionante como o mais borrabotas pode ser um herói. Aliás como tu e eu. Neste momento somos o herói de alguém. As melhoras. João Viçoso

Unknown disse...

Uma salva de palmas…
E um grande abraço a todos os leitores e escritores…

Mrs. Potter disse...

ui... adorei... está excelente. =)

Natanael disse...

fiquei sem palavras
nao sei o que dizer
acho que só posso dizer que adorei