Fim de dia

"Me beije, seu idiota!", disse-me o meu gato persa ontem à noite, no momento em que entrei pela porta de casa.

Imediatamente senti uma náusea fria no fundo do estômago. Aquele sentimento primário que nos assalta quando pressentimos que algo de muito errado se está a passar, o vestígio emocional dos tempos remotos em que os nossos antepassados primatas pressentiam uma cauda de felino entre a erva alta das pradarias africanas.

É que o meu gato odeia ser beijado, para além de nunca o ter ouvido falar antes com sotaque brasileiro.

Lembrava-me claramente de ter tomado a minha medicação nessa manhã, após o meu chefe me ter pedido para pelo menos vestir umas calças no local de trabalho, pelo que não podia ser isso.

Pousei cautelosamente a mala no chão enquanto passava rapidamente os olhos pela sala, à procura de qualquer coisa fora do normal. A minha esposa sorria para mim, beatificamente, da porta da cozinha. O bebé dormia, descansado, sonhando certamente com uma mijadela particularmente satisfatória. A televisão estava ligada, embora ninguém a estivesse a ver, a passar mais uma das intermináveis novelas brasileiras: em cena, uma actriz qualquer beijava sofregamente o galã do dia. Tudo normal.

Voltei a olhar para a minha gata, que me mirava de olhos semicerrados, sentada em cima da mesa. "Desculpa?" Perguntei eu, meio atarantado. "Nowwwwwwww!", exigiu ela assertivamente. O sentimento de náusea agudizou-se. Onde é que o bicho teria aprendido inglês?

Resolvi fazer de conta que nada de estranho se passava. Aproximei-me da mesa, segurei carinhosamente a cabeça peluda e apliquei-lhe um chocho demorado no focinho. O bicho ainda tentou o linguado, mas existem limites para a minha degradação moral.

Apesar de tudo, não foi inteiramente desagradável. Os rijos bigodes e o intenso hálito a peixe levaram-me de volta à adolescência, e à Srª Valentina, a peixeira que me roubou a inocência nos frios becos do Cais do Sodré.

"E eu?", perguntaram os olhos da minha esposa, agora ao meu lado, ao endireitar-me do ósculo felino. Beijei, profunda e demoradamente, a mulher que fez de mim um homem. O sentimento de náusea desvaneceu-se de imediato.

Sorri e fiz a pergunta certa, ao sentar-me no sofá, perto o suficiente para acariciar a face do meu filho adormecido, "como foi o teu dia, amor?". A minha esposa respondeu-me, falando durante alguns minutos. Não entendi a maior parte do que ela disse, nunca entendo, mas algumas palavras soltas aqui e ali, associadas ao tom de voz usado, foram-me dando indicações sobre quando assentir com a cabeça. Eu acho que ela fala português, mas seja por que motivo for, em dez felizes anos de casado, nunca entendi patavina do que a minha esposa diz. Julgo mesmo que esse é o segredo de um casamento feliz: um canal de comunicação completamente fechado.

O abrandar do ritmo e a subida acentuada do tom de voz indicou-me que ela me perguntava algo. "Igual aos outros, sabes como é, tudo na mesma", respondi eu. Já devia chegar, pelo menos até ao jantar.

Desliguei a televisão, onde continuava o festim de lambuzice, para não dar mais ideias à minha gata. Reclinei-me para trás e fechei os olhos, enquanto esperava pelo café que a minha esposa certamente me traria nos próximos minutos. No silêncio carregado das respirações dos que amo, as vozes continuaram a tagarelar na minha cabeça, como sempre, aliás. Prestei-lhes atenção por um momento: a minha libido estava a discutir a nova campanha da Triumph com a minha moralidade religiosa, enquanto o ego reptiliano repetia incessantemente "come, come, come, come, come, come" e o pseudo-intelectual declamava estranhos versos de três linhas, que nem sequer rimavam. A confusão do costume, portanto.

Um movimento fez-me abrir os olhos. A habitual chávena de café. "Obrigado", disse eu com um sorriso, ao que a minha linda mulher respondeu algo que não percebi.

Fechei novamente os olhos e deixei os minutos passarem. O café arrefeceu, era para receber, não para beber. O gato poliglota enroscou-se ao meu lado. O bebé respirou fundo no seu sonho. A minha esposa cantarolou algo na cozinha (não consegui entender a letra). As vozes na minha cabeça sossegaram, pouco a pouco.

Adormeci.

Sonhei com uma mijadela particularmente satisfatória.

18 comentários:

Eunice Rosado disse...

palmas! muitas palmas e alguns sorrisos.

Anónimo disse...

Tudo normal portanto...
ainda pensei que já te tinhas curado e deixado de postar...
fico feliz em saber que ainda vagueias na insanidade!
:]

what disse...

"Todo esgadanhado, você me deixou
Todo esgadanhado, com o seu amor"

Tá giro...

1.º Fico feliz por saber que continuas a tomar a medicação.
2.º Decepcionado por saber que ainda permites que se assista a novelas em tua casa.
3.º Quanto à "mijadela particularmente satisfatória", recomendo-te Lindor Anatómicas.
Ainda há quem diga que a energia atómica não é boa!

"Depois volta, com palmadas de revolta
Esse tau-tau me deixa tão feliz"

Unknown disse...

Um dia, quando decidires fazer um livro, deixa-me, pelo menos, ser um candidato a fazer a capa do mesmo!

Anónimo disse...

ora bem...
tira o gato!... já tiraste?
tira o filho... já está?
pronto... uma parte da minha vida retratada.
obrigado.

ruben reis

Unknown disse...

Mas como é que é possível este artigo só ter 6 comentários (a contar já com o meu)!!!??? Não tens fãs!!!???

Emanuel Viçoso disse...

Tenho sim senhora!

E estão todos aqui....

A insanidade aparentemente é um estilo de vida pouco interessante, para os jovens e menos jovens de hoje em dia, que estão muito mais interessados em gajas e besanas.

Não é que não os entenda, mas para mim, os prazeres materiais não podem competir com a satisfação existencial de uma alucinação delirante.

Mas isso sou eu...que sou um incompreendido...

Ainda assim, conto convosco, para espalhar as boas novas da insanidade.

Grande bem haja a todos os leitores destes meus momentos de delírio, especialmente aos que se dão ao trabalho de comentar.

Obrigado,

EV

Anónimo disse...

O Senhor não se agrada deste tipo de linguagem!.....

Anónimo disse...

O Senhor agrada-se dos que são puros de coração...

Natanael disse...

é desta que te impomos as maos
lol

Unknown disse...

Eh lá… Isto está a descambar!

what disse...

Isso é que é preciso.
- Anónimo

Unknown disse...

Oh Valado!! És Anónimo ou Valado!?!?!? Em que é que ficamos?!

Mrs. Potter disse...

Isto tá muito bonito por aqui.. E eu que pensava que não havia novos posts por aqui. Estas histórias parecem-me uma mistura de Poe com qualquer coisa de Kafka. Enfim, um pastiche mt fixe e delicioso. =)
Ah pois, sou uma fã. :p

Unknown disse...

Tá demais, não tns mais destes, para eu me fartar de rir e me ver ao espelho, sem chorar, mas partir u cuco a rir...!

Um grande abraço...finalmente já não me sinto só...

- Tony -

Anónimo disse...

Emanuel, estava a trabalhar quando, sabe-se lá porquê, me veio à memória um momento em que vieste à minha mesa, com esse teu ar malandro, para me mostrar um texto que tinhas escrito sobre como respiram as baratas. Ah! Decidi investigar e encontrei. Li deliciada todos os textos! Gostei muito, particularmente o "Fim de dia"! Espero que continues a publicar estes teus pensamentos e desvaneios literários!

Um grande abraço para ti,

E tudo de melhor,

Cris

Anónimo disse...

Isto anda muito parado EV

Anónimo disse...

Tio realmente estás um pouco insano! Ao ler uns quantos paragrafos que escreveste, dei por mim a pensar " Bem, Este gajo é msm maluco! por vezes não percebi nd do que escreveste pensando que talvez fosse a minha inteligência um pouco diminuida, outras, simplesmente ria! mas num outro pensamento cheguei a conclusão de que estou feliz por ser como sou e contente por me considerar uma pessoa sã!=) Cmo é que arranjas.T gaja? A tia tmb deve ser maluca! Hehehe xD Abraço Brincadeira=)