Estou na Província de Tete, interior centro de Moçambique.
Caminho pelo meio de um rio de 10 metros de largura. Seco, claro. Ainda não cheguei
a esse nível de santidade.
O rio está seco há 8 meses. É possível que dentro de algumas
semanas, quando as chuvas finalmente chegarem, volte a ter água. Terá caudal
durante 3 ou 4 meses e depois voltará a secar. Entretanto, as pessoas plantam e
cultivam as suas machambas no leito
seco do rio, tentando aproveitar a pouca humidade que ainda está sob o solo,
nesta árida terra, onde a vida é árdua. Muito árdua.
Duas mulheres e um rapaz adolescente aproximam-se. As
mulheres começam a escavar numa das curvas do rio. Aproximo-me, curioso. Uma
das mulheres escava até ficar com terra pela cintura, e finalmente encontra o
que veio procurar. Água. Água castanha, cheia de sedimento. Água para beber e
cozinhar.
Faço-lhes algumas perguntas. Conseguem sempre encontrar
água, quando o rio está seco? Quantos meses por ano fica assim? Não consigo
respostas. Elas não falam português, apenas Nhungué, o dialecto local. Tento o
rapaz. Tipicamente os jovens vão pelo menos alguns anos à escola, e falam
português. Mas ele afasta-se. Caminho atrás dele, a chamar, a fazer perguntas.
Mas ele continua a andar, escondendo-se atrás de árvores e arbustos. E eu então
percebo. Ele está a fugir de mim.
Eu sou um estranho em
terra estranha.
Era um adolescente quando li este
romance de ficção científica. Robert Heinlein sempre
foi um dos meus autores favoritos, especialmente nos primeiros anos da sua
obra. Com a idade, ele começou a ficar cada vez mais esotérico e a derivar para
outros conceitos de moralidade e sexualidade, e eu fui ficando menos
interessado. “Stranger in a strange land”
cai dentro desta segunda fase, e eu não gostei muito do livro em si. Mas o
conceito principal do livro ficou para sempre entranhado. Tal
como Moisés, eu sou, e sempre fui, um estranho em terra estranha.
Agora mais que nunca.
Claro que esta noção não veio só
de Robert Heinlein. A leitura daquele livro apenas acentuou todas as
ressonâncias deste conceito na minha vida até então.
Eu nasci num lar protestante, e
fui criado numa subcultura Calvinista.
A minha fé e tudo o que está subjacente a essa cultura tornou-me uma estranha
criança e adolescente, no meio de uma sociedade europeia pós-cristã. Aliás, o
conceito do peregrino numa terra estranha, a noção de que estamos aqui mas não
somos daqui, é mesmo ensinada na subcultura onde cresci.
Por outro lado, sempre fui um nerd. Fantasia, ficção científica,
ciência, o caminho do Samurai, gaming
culture, heavy metal, e tantas
outras coisas, sempre fizeram parte da composição de influências que moldou a
minha mentalidade e a minha atitude. Cada uma delas me tornou mais ou menos
estranho para um sector ou outro da sociedade.
Fora da Igreja, um conservador
desactualizado. Dentro da Igreja, um liberal mais ou menos repreensível.
Sempre fui um estranho em terra
estranha.
Mas nunca devido à côr da minha
pele. Em Moçambique sou um mulungo,
um branco. E sou estranho por causa disso. Importante notar que isto não tem
nada a ver com racismo. Nunca me senti alvo de racismo aqui. O próprio termo mulungo não é depreciativo, só
descritivo.
Sou apenas diferente.
E é uma nova estranheza ser estranho
também por causa disso.
EVV
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