São
9 da manhã e já estão mais de 30 graus. Estou em pé, ao sol, à espera que
cheguem pessoas suficientes para iniciar uma reunião de consulta pública. Á
minha frente, estão já mais de 80 pessoas sentadas debaixo de uma árvore, um
embondeiro, o local tradicional para as reuniões comunitárias, aqui na pequena
aldeia de Chissua, Distrito de Cahora Bassa, na Província de Tete, interior
centro de Moçambique.
Começo
a ficar preocupado. Tinha pedido ao Régulo, o líder tradicional daquela aldeia,
para chamar cerca de 75 pessoas. Já se juntaram mais do que isso, e continuo a
ver vários pequenos grupos a caminharem para o local da reunião. “Acha que vai
chegar muito mais gente?”, pergunto ao régulo, que está vestido no seu uniforme
de aspecto para-militar, fornecido pelo governo formal, como uma forma de
legitimar a liderança tradicional. “Sim, ainda deve chegar muita gente. Temos
de esperar um pouco, algumas pessoas vêm de longe”.
É
bom que venha muita gente à reunião. Estou aqui hoje para apresentar um
projecto que está a ser estudado neste Distrito, e é bom que o máximo de gente
possível esteja hoje aqui, para conhecerem o que está a ser planeado e para que
expressem as suas opiniões e preocupações. O problema é que só tinha planeado
refeições para 75 pessoas. E pelo aspecto da coisa, vou ter mais de 100 homens
e mulheres aqui, sem contar com as crianças.
Oferecer
comida numa reunião de consulta pública é algo que eu nunca faria na Europa.
Mas aqui é relevante. Muitas destas pessoas vieram a pé de longe, 10 km, 20 km,
para estarem aqui. Contando com o tempo de deslocação de ida e volta, elas
efectivamente abdicaram de um dia de trabalho para estarem presentes. E aqui,
no interior seco de Moçambique, isso é relevante. Ninguém tem muitas reservas,
alimentares ou financeiras. Um dia de trabalho perdido é um custo concreto e
real. E isso tem de ser compensado.
As
pessoas continuam a chegar, já são agora mais de 100. Tenho de fazer alguma
coisa. Não será bom se só tiver comida para parte dos presentes. Aproximo-me do
Régulo, “Estou preocupado. Não tenho comida para tanta gente. Será possível
encontrar alguém que me venda um búzi (cabrito)
e que o cozinhe?”. Ele diz que sim. Passados alguns minutos, uma mulher
aproxima-se com um cabrito vivo, gordo e de pele luzidia. Um bicho já quase
adulto, grande o suficiente para fazer uma refeição que complemente o que já
tenho planeado. Negoceio com ela o preço do animal e da confecção, e com um
assento de cabeça final condeno o cabrito à morte. O inocente pagará pela falta
de planeamento do culpado.
Mais
descansado, avanço com a reunião. Corre bem. As pessoas participam e o meu
trabalho está meio feito. No fim, aviso as pessoas que não temos lanches para
toda a gente, mas que um cabrito está a ser preparado. Peço paciência àqueles
que não receberão já o seu almoço. Para tentar diminuir o número que não
receberão nada imediatamente, decidimos distribuir a comida e os refrescos
(coca-colas) separadamente. Os lanches rapidamente desaparecem, e como temia,
muita gente não recebeu nada. Começamos a distribuir as bebidas, mas depressa
torna-se óbvio que não vai chegar para muitos dos presentes.
As
pessoas começam a fazer um círculo cada vez mais apertado em redor das minhas
colegas, que vão distribuindo as bebidas da melhor forma possível, para um
grupo de dezenas de pessoas de mãos e braços estendidos. Temendo o pior, forço
a minha passagem até ao centro do círculo, e peço às minhas colegas para irem
esperar dentro do carro. Elas, relutantemente, obedecem.
Fico
no meio de dezenas de pessoas, faço sinais para terem calma, relembro que o
cabrito está a ser preparado, peço para se afastarem, mas não é suficiente. O
círculo fecha-se de repente, as pessoas saltam para cima das mesas com as latas
de bebida, atropelando-se uns aos outros. Consigo não cair, e saio do meio da
confusão. A rapariga que nos estava a ajudar desaparece debaixo de uma massa
humana. Um homem agarra um pack de 24 latas e começa a fugir. Várias pessoas
começam imediatamente a persegui-lo, para tentar tirar-lhe o fruto do roubo.
Em
dez segundos as latas desaparecem e a multidão dispersa-se, deixando para trás
a rapariga deitada no chão, a chorar, agarrada a um braço. Ajudo-a a levantar e
encaminho-a para as minhas colegas, que a metem no carro. O meu cliente,
ansioso, faz sinal para irmos embora, para deixar o local.
Fico
parado, a olhar para as pessoas à minha volta. A tensão desapareceu. Não há
perigo aqui. Não há necessidade de uma saída rápida e amedrontada. Um jovem
rapaz, perto de mim, começa a dizer-me para levar o cabrito, porque as pessoas
não merecem. Mas não se trata de mérito. Foi uma promessa, e será cumprida.
Despeço-me
das pessoas à minha volta. Dou qualquer coisa ao ancião que me ajudou a
traduzir a apresentação para o dialecto local e finalmente entro no carro e
conduzo de volta ao hotel, para alívio dos meus colegas.
Mas
a imagem de uma massa de homens e mulheres a atropelarem-se para agarrarem uma
lata de coca-cola não sai da minha cabeça.
Não
pela violência ou stress da situação.
Pelo
choque de perceber que alguém considera uma lata de água com açúcar algo
valioso o suficiente para lutar por ela.
Eu
não vivo no mesmo mundo dos habitantes de Chissua. A minha perspectiva do mundo
é radicalmente distante da perspectiva destas pessoas. E isso torna uma mesma
acção simultaneamente incompreensível para mim e perfeitamente justificável
para outro.
Quantas
das minhas acções, ao longo dos anos, foram perfeitamente justificáveis para
mim e incompreensíveis para outros?
Voltarei
aqui noutro post.