Estou em Pemba, a Província litoral mais a Norte de
Moçambique. Tanzania fica a poucos quilómetros daqui e Maputo a mais de
2000 km para Sul. Estou a meio de uma semana e meia de trabalhos de campo,
o que implica passar por cá o fim-de-semana.
Estou sentado no exterior do meu quarto, a 30m do mar. À
minha frente estende-se a Baía do Wimbi, um mar lindo, de cor torquesa com
manchas de verde. Uma praia de areia branca estende-se para ambos os lados, e
eu estou aborrecido de morte.
É uma das minhas muitas idiossincrasias. Estou num cenário
paradisíaco, num Domingo preguiçoso, sem nada para fazer a não ser disfrutar da
praia e do cenário. Mas, por algum motivo, nunca me consigo divertir nestas
situações. Não me consigo abstrair do facto de estar aqui “em trabalho”. Não
consigo afastar a sensação de estar longe de casa, afastado da família, numa
missão que não é suposto ser divertida. Sim, é estúpido, mas é uma das muitas
coisas que aprendi a aceitar em mim
Mantenho-me sentado, numa cadeira de madeira, enquanto o meu
colega mergulha no Índico. Ponho o meu ipod no modo aleatório, e deixo a música
encher o meu ambiente, enquanto me tento concentrar no novo livro do Brandon
Sanderson.
Algumas músicas interrompem a minha leitura, levando-me de
volta a vários momentos da minha vida. É sempre assim com a música para mim.
Certas canções ficaram tão marcadas a fases da minha vida, que basta ouvir os
primeiros acordes para voltar ao passado. E quero dizer mesmo voltar ao
passado. A música evoca mais que uma memória, uma estória escrita no papel. A
música traz de volta sentimentos, cores, imagens, às vezes até cheiros. Leva-me
atrás, a outros eus do passado.
“Civil rites”, dos
Rez, põe-me a acordar na Amadora, no tempo que trabalhava como repositor no
Continente de Cascais e acordava todos os dias ao som desse álbum. Um tema do
“Fé, Esperança, Amor”, faz-me pensar nos tempos de Logos. Os amigos que fiz lá,
uns que ficaram, outros que deixei, os tempos difíceis e divertidos que
tivemos. “The Normals” faz-me voltar a umas férias de verão, e à viagem diária
entre Fanhões e a Praia das Maçãs, contigo e com os miúdos, feita ao som desse
álbum.
O ipod parece que está a brincar comigo, obrigando-me a
concentrar no passado, em vez do livro que tento ler. Penso em desligar a
música, mas nesse momento começa “With or Without You” dos U2, e eu estou de
volta a uma tarde de verão do ano 2000, numa quinta em Sintra. Tu estás vestida
de branco, à minha frente. Os teus olhos sorriem. Abraço-te e começamos a
primeira dança enquanto casal, enquanto amigos e família rodeiam-nos, gritando,
rindo e esperando a música mudar para algo mais dançável.
Ponho o livro de parte. Esta memória em particular é forte
demais para me permitir fugir.
Penso em ti.
Nos anos em que nos conhecemos, ambos miúdos. Persegui-te
como um lobo persegue a lua. Um sonho celeste, mantido à distância de um
uivado. Tentei caçar-te, sem sequer perceber que era de facto a presa. Tantos
dias passados em descoberta, tentando adivinhar o que o outro estava a pensar.
Tantos telefonemas de minutos em silêncio, sem nada para dizer, mas sem querer
desligar o telefone.
Penso nos primeiros anos do nosso casamento. As lutas e
dificuldades em nos adaptarmos a uma nova vida. As discussões, os momentos em
que me deixaste doido. Os anos em que buscamos um sonho, que pareceram tão
longos e secos na altura, mas que agora estão tão distantes, há muito cobertos
pelo riso dos nossos filhos.
Os nossos filhos. Penso nos dias em que eles nasceram. Em
como os trouxeste ao mundo com gritos de dor. Na expressão dos teus olhos
quando os seguraste pela primeira vez. Uma profunda luz cobrindo uma face
exausta. Em como lhes deste tudo o que tu és, sem, por algum milagre, me
tirares nada a mim. Penso nos anos em que eles cresceram tão rápido. Penso em
como eles mudaram totalmente a nossa vida. Para melhor.
Penso no presente. Em como vieste comigo para África, uma
perspectiva que nunca sequer pensamos que viesse a ser possível. No preço que
pagaste, e continuas a pagar, para estarmos juntos. Na força que mostras, mesmo
quando te sentes fraca. Na alegria de estar contigo, ainda que por algumas
horas ao fim do dia.
E no futuro? É
dificil de pensar no futuro. Deixei há muito de fazer grandes planos. O mundo
parece girar à nossa volta, tudo muda tão rápido. Mas isso não me incomoda.
Desde que estejas junto a mim, no centro do vendaval. No olho do furacão, onde
os ventos não nos podem tocar.
Quanto mais anos passam, menos certezas tenho. Pouco resta
da arrogante sapiência da minha juventude. Foste tu, aliás, que fizeste a
primeira brecha nessa armadura. Mas continuo a ter certeza de ti. De te querer.
De desejar envelhecer contigo. De te conhecer todos os dias, um pouco mais. De
lutar contra o mundo e contra mim mesmo, para manter este tesouro que me foi
dado: o teu coração.
Penso em ti. Minha amiga, amada e amante. Até que a morte
nos separe. E muito para além disso.